O melhor pedaço da Maçã.

A realidade mista e nossa relação com a tecnologia

Apple Vision Pro
Autor(a) convidado(a)

Davi Costa

Designer de produtos digitais que deseja traduzir a complexidade e projetar experiências que parecem inevitáveis, como as da Apple. Adora testar produtos mágicos, feitos com cuidado. Usuário de produtos da Apple desde o primeiro iPod nano e leitor do MacMagazine desde 2011.

No começo de junho foi anunciado o Apple Vision Pro, que a Apple escolheu chamar de seu primeiro computador espacial. Vocês devem ter visto as piadas sobre o preço, a forma ou toda a ideia do dispositivo. Eu queria trazer pra vocês minha interpretação do que a Apple apresentou e o porquê de eu estar otimista sobre esse produto.

Publicidade

As possibilidades que a tecnologia abre me fascinam desde pequeno. Mas foi usando os produtos da Apple que aprendi o valor do design, da tecnologia humana. Me tornei designer de produto por conta da Apple e, nesse sentido, o Vision Pro me fez refletir bastante. Não só ele me lembra do motivo de eu fazer design, mas também me dá pistas sobre como o papel do designer — e o mercado de tecnologia como um todo — pode evoluir nos próximos anos.

Pra começar, vou falar sobre qual acredito que seja a intenção da Apple com esse dispositivo e por que é relevante entender essa intenção. Depois, vou entrar no que já sabemos sobre a interação e quais são os primeiros diferenciais que identifiquei. E por último, detalhar qual é o futuro otimista em que acredito.

Intenção

Para começar, falando sobre intenção, é preciso reconhecer que é compreensível ser pessimista sobre realidade aumentada (AR) e realidade virtual (VR). A popularização de dispositivos móveis conectados à internet trouxe impactos negativos em nossas vidas. Não fomos prevenidos e, às vezes, fomos até estimulados pelas plataformas a criar hábitos negativos.

Publicidade

Só para citar alguns: obesidade pela falta de atividade física, dores musculares pelas posturas inadequadas, miopia por mantermos a mesma distância focal, surdez pelos volumes altos, dificuldade de concentração pela troca constante de contexto, falta de disposição pelo sono insuficiente… e por fim, mas não menos importante, isolamento social pela oferta ilimitada de gratificação instantânea. Considerando todo esse impacto, é fácil ser cético sobre o futuro em geral.

Pessoas usando smartphones

É claro que as pessoas que criaram as tecnologias também começaram a sentir os problemas. Um exemplo clássico era Steve Jobs e Bill Gates limitando o tempo dos seus filhos em dispositivos digitais. Mas por que eu estou relembrando tudo isso? Para entender a intenção da Apple, é importante posicionar o desenvolvimento do Apple Vision Pro no tempo. Ele levou uns oito anos para ser lançado e foi justamente por volta de 2015 que a Apple começou a tentar remediar os problemas que tinha causado.

Para listar alguns desses esforços, temos os modos de Foco (aprimorados desde 2012), o Tempo de Uso (2018), o monitoramento de ruídos (2019) e o SharePlay (2021). Já em 2023, a companhia apresentou na WWDC os alertas de distância da tela e o rastreamento de exposição ao sol. Todos esses recursos ajudam a reconciliar a relação entre as pessoas e a tecnologia.

Publicidade

Até o Apple Watch dá para conectar com esse problema do uso excessivo de tecnologia. É um dispositivo menos capaz que, em teoria, pode substituir o smartphone em alguns momentos. Por exemplo: durante uma conversa, é menos intrusivo rejeitar uma ligação pelo relógio do que puxar o celular do bolso.

Apple Vision Pro

Dito isso, por favor não me entendam errado. Não estou defendendo que o Apple Vision Pro foi criado para resolver a sociedade. Acredito que criaram o produto para ser desejável e, por consequência, dar lucro aos acionistas. O Vision Pro é o que a Apple acredita ser o produto mínimo viável. Mas existem MVPs1Minimum viable products, ou produtos mínimos viáveis. e… MVPs. A definição de um MVP muda conforme os objetivos que foram traçados.

E, falando desses objetivos, acredito que a Apple poderia ter feito bem menos e o produto ainda teria tração. A barra de qualidade só para ser desejável já era alta. Mas eles não se limitaram ao que as pessoas querem ou podem desejar, pensaram também no que as pessoas precisam. Ao decidirem ir além, deixaram claro que estão cientes da responsabilidade que possuem. Foi assistindo a esse comercial durante o evento que comecei a perceber essa preocupação.

Apple Vision Pro

No dia a dia, você passa tempo sozinho e também passa tempo junto a outras pessoas. Você passa tempo sentado e também realiza todo tipo de atividade em pé. Você está constantemente aproveitando as interfaces digitais e o mundo físico. Lógico que ainda existem barreiras, mas essa visão da Apple me faz pensar que um headset pode ser mais humano que um smartphone.

Diferenciais

Para explicar como a Apple foi além, vou citar os pontos nos quais acho que investiram esforço e dinheiro mesmo não sendo necessário para adoção. As decisões que tornaram a abordagem da Apple humana e, portanto, diferente de outras empresas fazendo headsets. Dessa vez, acredito que desde o começo se perguntaram: quais possíveis consequências negativas precisam ser prevenidas?

Apple Vision Pro

Para começar, temos o foco na criação além de consumo. A própria natureza do dispositivo mostra isso: realidade mista. A Apple não entregou apenas realidade virtual. De certa forma, realidade virtual é o que já temos quando estamos usando um iPhone ou um Mac. Deixar o virtual mais imersivo não torna a humanidade mais capaz. Pode até ser uma forma divertida de jogar um videogame ou assistir a um filme, mas já temos muitos dispositivos de consumo.

Publicidade

O que potencializa a capacidade humana é facilitar o ato de criar. A câmera onipresente do iPhone fez isso. Já a realidade mista faz isso ao permitir que elementos digitais existam em ambientes físicos. Decorar um apartamento, projetar uma linha de produção, navegar em um lugar desconhecido… nessas tarefas, o digital era só um meio para um fim que estava distante. É provável que, agora, mais pessoas consigam atingir resultados melhores mais rapidamente.

Evolução

Outra decisão que diferencia o dispositivo é o foco em libertar o corpo humano. Nada retrata a situação atual melhor do que esse meme. Tanto desktops quanto notebooks nos deixam sentados e ocupam nossas duas mãos. Smartphones entortam nossos pescoços e ocupam, no mínimo, uma mão. Os displays de todos esses dispositivos limitam o que vemos e a qual distância.

Depois de teclado, mouse, Click Wheel e telas de toque, voltamos ao começo: nosso olhar, nossas mãos e nossa voz. A ideia de um headset que pode ser controlado apenas com o corpo dá um reset nessa decadência. Esse novo modelo de interação significa uma maior liberdade de movimento, já que não temos que segurar nada ou ficar numa mesa. Também significa que vamos olhar para diferentes distâncias, já que não temos mais uma tela numa posição constante.

Mulher atravessando a rua com smartphone na mão

Por último, mas não menos importante, temos o foco em conciliar nossa atenção. O Vision Pro é capaz de devolver nossa atenção para o físico quando necessário. Sabe as pessoas que atravessam uma faixa de pedestre olhando para o celular? Agora é possível projetar proteções considerando onde a pessoa está, para onde está olhando e como está posicionada. A Apple já apresentou algumas, inclusive.

Ao usar o Vision Pro, as janelas se mesclam com o mundo físico. Quando alguém se aproxima e começa a falar com você, seus olhos “aparecem” e você vê a pessoa por cima de qualquer interface. Apps também vão poder ter interfaces ainda mais focadas sem prejudicar a usabilidade. A técnica de progressive disclosure, que envolve mostrar mais informações sob demanda, vai poder ser aplicada de forma mais eficaz, com base no olhar.

Falei então sobre como o Vision Pro foca em criação além do consumo, ao permitir que elementos digitais existam em ambientes físicos. Sobre como ele liberta o corpo humano, ao entregar um modelo de interação baseado no olhar, nas mãos e na voz. E por fim, expliquei como ele concilia a atenção ao projetar proteções considerando o ambiente físico.

Futuro

Mas é importante lembrar que estamos falando de um MVP que ainda nem chegou ao mercado. A tecnologia vai se tornar menor, mais leve e mais barata. A adoção do dispositivo vai crescer e, por consequência, seu impacto na sociedade. Estou apenas arranhando a superfície com essas hipóteses que trouxe. E, já que estamos no campo das ideias, queria avançar ainda mais no futuro.

Smartphones se tornaram onipresentes e mudaram o mundo nesse processo. Como o mundo físico vai ser transformado pela disseminação desses headsets? Acredito que vamos voltar a centralizar nossas necessidades em um só computador pessoal, mas dessa vez ele irá nos parecer transparente.

O ambiente das nossas casas, dos comércios e das empresas serão planejados mesclando conteúdo digital livremente. Mas, diferentemente do cenário de poluição visual e múltiplas telas que temos hoje, nós vamos poder controlar o que queremos ver e como.

Vários computadores em cima de uma mesa

Como disse antes, o Apple Vision Pro não foi criado para resolver a sociedade. Mas acredito que tornará a situação melhor. Debates que já acontecem, como o direito à privacidade e o papel das plataformas, vão ganhar novas dimensões. Não consigo nem imaginar o que vai mudar quando conseguirmos controlar interfaces com nossas mentes e sentir feedbacks táteis.

Inclusive, não sei se o caminho é um headset. Pode ser que voz e hologramas ganhem tração, como a Humane apresentou nessa palestra no TED — a Humane, vale notar, é uma empresa fundada por vários funcionários da Apple que estavam insatisfeitos com a direção de um headset.


É isso, gente. A Apple me deixou otimista sobre o futuro. Mas queria escutar de vocês: o que acharam da proposta do Apple Vision Pro? Realidade mista será apenas mais uma forma de exploração… ou é algo que vai nos libertar e potencializar nossas capacidades?

Vamos debater nos comentários, abaixo. 😊

Notas de rodapé

  • 1
    Minimum viable products, ou produtos mínimos viáveis.

Ver comentários do post

Compartilhe este artigo
URL compartilhável
Post Ant.

“Buccaneers” e “Dickinson”: unidas até que Alena Smith as separe

Próx. Post

O que fazer se o iPhone estiver desligando sozinho

Posts Relacionados