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“Projeto Titan” e a década perdida

The Information
Tim Cook e "Apple Car"

Quando Steve Zadesky, o então vice-presidente de design de produtos da Apple, foi escolhido para capitanear o “Projeto Titan” em 2014, ele foi autorizado a formar uma equipe de até 1.000 pessoas, incluindo uma rara permissão para realocar engenheiros de outras divisões dentro da própria companhia para o novo projeto. Curiosidade: na época, a Apple tinha 97.000 funcionários; hoje, são 164.000.

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E ele não perdeu tempo. Em setembro de 2014, a Apple contratou Johann Jungwirth, presidente e CEO1Chief executive officer, ou diretor executivo. da Mercedes-Benz Research & Development North America. Nos meses que se sucederam, a empresa atraiu talentos renomados, incluindo Chris Porritt (vice-presidente de engenharia de veículos da Tesla) e Jonathan Cohen (especialista em sistemas avançados de direção assistida da NVIDIA).

Quase dez anos depois, Jungwirth, Porritt, Cohen e inúmeros outros grandes nomes do setor automotivo não estão mais lá. Eles estão no Google, na Luminar, na Rivian, na GM, na Tesla, na Ford, na Faraday Future, etc. Já o “Projeto Titan” ainda é está em constante adiamento e com contornos cada vez mais fortes de oportunidade perdida.

🟢 Sinal verde

A primeira noticia sobre um carro elétrico da Apple veio em 2015, em uma matéria do Wall Street Journal. Na época, os jornalistas Daisuke Wakabayashi e Mike Ramsey relataram com exclusividade que, no ano anterior, Tim Cook havia autorizado o início do projeto de codinome “Titan”. Ainda de acordo com eles, havia uma equipe de centenas de pessoas trabalhando no desenvolvimento de um veículo elétrico que lembrava uma minivan.

Conceito de carro elétrico da Apple, por Emre Husmen.

Em 2014, foram vendidos 315.400 veículos totalmente elétricos ao redor do mundo, um crescimento de 50% em relação a 2013. Nos Estados Unidos, o modelo mais vendido foi o Nissan Leaf (30.200 unidades), à frente do Chevrolet Volt, do Tesla Model S e do Toyota Prius PHV, respectivamente.

Vendas totais de carros elétricos em 2013 vs. 2014.

Apesar de estar na terceira posição no ranking e de ter apenas 14% de participação de mercado no segmento de veículos elétricos, a Tesla já era vista como a marca a ser batida. E não era para menos. Em 2014, a promessa era de que “no ano que vem”, seus carros seriam capazes de dirigir 90% do tempo de forma autônoma. Além disso, ela projetou que as vendas na Ásia e na Europa ao fim de 2014 corresponderiam ao dobro das vendas na América do Norte. Nada disso aconteceu — em janeiro de 2015, a Tesla vendeu um total de 120 carros na China — mas era evidente que o ar de inovação que companhia trazia para o nascente mercado de veículos elétricos era contagiante.

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E a empolgação não era apenas relacionada à Tesla. Todas as projeções sobre o mercado de carros elétricos traziam curvas exponenciais e números repletos de zeros, prevendo uma daquelas oportunidades de negócio que aparecem uma ou duas vezes a cada geração. Foi com esse cenário em mente que Tim Cook aprovou o projeto.

🟡 Sinal amarelo

Mas o que é o “Projeto Titan”? Bem, ao longo dos últimos anos, essa resposta mudou bastante. Inicialmente, segundo o WSJ, a ideia era lançar a tal da minivan elétrica.

A matéria, vale ressaltar, não citava nada sobre um carro autônomo. Esse rumor surgiu meses depois, com as primeiras notícias de reuniões entre a Apple e executivos de um circuito californiano de testes de carros autônomos, e também com especialistas da divisão de veículos autônomos do DMV2Department of Motor Vehicles, equivalente ao nosso Detran..

Um Acura RLX autônomo no circuit automated vehicle testing, na GoMentum Station.

No anos seguintes, vieram múltiplas mudanças de liderança. Steve Zadesky deu lugar a Bob Mansfield que deu lugar a Doug Field que deu lugar a John Giannandrea que deu lugar a Kevin Lynch que não amava ninguém.

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Cada novo líder trouxe consigo uma direção nova ao projeto. Em dado momento, a Apple havia desistido completamente de desenvolver um carro e faria apenas um sistema autônomo. Posteriormente, voltou à ideia de desenvolver um carro, que sequer teria um volante e pedais. Depois, o carro seria fabricado pela Kia, cuja dona é a Hyundai. Aí passou para a canadense Magna em parceria com a LG. Seu lançamento já esteve previsto para todos os anos entre 2021 e 2028. Atualmente, a ideia é lançá-lo por menos de US$100.000 em 2026, com volante, pedais e um sistema autônomo apenas para estradas.

🔴 Sinal vermelho

O mercado de carros elétricos em 2023 é bem diferente do que Cook levou em conta quando aprovou o “Projeto Titan”.

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Se há uma década havia ampla oportunidade de crescimento, ela foi quase inteiramente engolida pela Tesla que chegou a conquistar 78% de participação de mercado em 2018 — e cujo valor de mercado em 2021 ultrapassou os da Honda, da Ford, da BMW, da GM, da Mercedes-Benz, da BYD, da Volkswagen e da Toyota… somadas!

Variação nas ações da Tesla na NASDAQ ao longo dos últimos 5 anos.

Mas, ao contrário da Apple, que passou os últimos dez anos derrapando, a concorrência da Tesla reagiu. Hoje, especialmente nos mercados norte-americano e asiático, outras montadoras já oferecem veículos competitivos em autonomia, preço e design. Recentemente, o podcast “Land of the Giants” fez um episódio bem interessante a respeito desse tema, entrevistando especialistas do setor automotivo.

Outro comparativo interessante foi publicado na última semana pela jornalista Joanna Stern. Ela analisa alguns aspectos do Tesla Model Y, do Ford Mustang Mach-E e do Hyundai IONIQ 5. Confira abaixo:

YouTube video

E falando na Tesla, aqui vai um perfeito retrato da mudança ao longo dos últimos dez anos: hoje, ela vive uma desvalorização de mais de 40% frente à sua alta histórica de novembro de 2021 e sua participação de mercado caiu para 62%. Segundo o Bank of America, ela poderá chegar a apenas 18% em 2026.

Em meio a tudo, o mercado automotivo tradicional não para de contratar executivos e engenheiros vindos da Apple, incluindo em segmentos até recentemente ignorados pelo setor automotivo.

A GM, por exemplo, abandonou o suporte ao CarPlay e vem trabalhando em uma (polêmica) alternativa própria, cuja oportunidade de faturamento anual com serviços ela coloca na casa dos US$25 bilhões até 2030. Já a Ford contratou recentemente Peter Stern, que, antes de deixar a Apple em janeiro, era visto como o sucessor presumido de Eddy Cue no cargo de vice-presidente sênior de serviços.

É curioso, mas, em dez anos, as montadoras entraram nos mercados da Apple mais rápido do que a Apple entrou no mercado das montadoras.

⛔️ Sem saída

A ideia da Apple fazer um carro próprio sempre foi estranha. Legal, empolgante, mas estranha. Sempre pareceu fazer mais sentido ela adotar uma abordagem semelhante à da Apple TV, que é um acessório feito para deixar qualquer TV conectada.

Desenvolver um acessório ou um kit junto de um sistema para transformar um carro tradicional em um carro inteligente traria um outro grau de complexidade em relação a uma TV, é óbvio (alô, Comma.AI)! Mas a oportunidade de causar um impacto positivo no trânsito em escala mundial seria igualmente gigantesca.

YouTube video

Ao longo dos últimos anos, não faltaram boas teorias sobre o propósito de um carro feito pela Apple. Uma das mais interessante veio do analista Neil Cybart, o qual defende que a verdadeira oportunidade da Apple está em oferecer não “apenas” um carro para as pessoas comprarem, mas sim algo próximo da Cruise, que opera em San Francisco e oferece uma espécie de Uber autônomo.

Segundo Cybart, a Apple poderia oferecer basicamente um cômodo sobre rodas; sem volante ou pedais, o carro ofereceria uma… experiência de deslocamento, personalizada com a temperatura, luz ambiente, músicas ou séries e filmes da preferência da pessoa. Ele nem precisaria parecer um carro por dentro. Poderia ter um pequeno sofá, poltronas ou uma cama (alô, Cruise)! Tudo sincronizado com o iCloud e o ID Apple. Ter acesso exclusivo a — e se deslocar em — um carro desses seria a recompensa de ser um usuário da Apple.

Veículo da Cruise, que tem autorização para rodar sem motoristas em São Francisco
Veículo da Cruise, que tem autorização para rodar sem motoristas em San Francisco.

Interessante, sem dúvida. Mas quantos carros seriam necessários para a Apple transformar isso em uma operação lucrativa? Esqueça lucrativa. Algo viável em qualquer lugar fora da Califórnia? Mesmo se o produto/serviço acelerasse a aprovação de novas leis ao redor do mundo, com que velocidade isso poderia chegar a um número significativo de países?

Também entra aí uma questão importante: não faltam levantamentos que mostram que é furada a teoria de que serviços como a Uber ajudam a tirar carros das ruas. Em 2021, por exemplo, o MIT3Massachusetts Institute of Technology, ou Instituto de Tecnologia de Massachusetts. analisou a diferença de trânsito antes e depois do surgimento dos carros por aplicativo em diferentes cidades dos EUA. Na média, a duração dos engarrafamentos aumentou 4,5%, o uso do transporte coletivo caiu 8,9%, e a quantidade de pessoas com carro próprio encolheu apenas 1%

⚠️ Siga com atenção

Há décadas, a Apple promove a missão de deixar o planeta melhor do que antes. Mesmo com um carro elétrico, essa conta não fecha. Como eu argumentei recentemente, um carro da Apple parado no trânsito, por melhor que seja, ainda será apenas mais um carro parado no trânsito.

Quando o assunto é mobilidade e qualidade de vida (especialmente nos grandes centros), todo urbanista sabe que a chave está em soluções que favoreçam o coletivo, e não o individual. O Waze é um bom exemplo. Suas parcerias com governos e órgãos de trânsito e rodagem ajudam a identificar problemas e investigar soluções, e isso de fato melhora as condições do trânsito de múltiplas cidades. Não é tão sexy quanto um carro elétrico autônomo, mas é infinitamente mais útil.

Em 2014, o “Projeto Titan” aparentava ser uma ótima ideia. Hoje, a sensação que fica é que a Apple perdeu o bonde4🥁. Olhando para o mercado, olhando para a Apple e, olhando para todas as idas e vindas que o “Projeto Titan” já sofreu, o lançamento desse carro em 2026 parecerá fazer tanto sentido quanto se a Porsche resolver voltar a fazer celulares para concorrer com o iOS e o Android.

Telefone Porsche Design P’9521
Telefone Porsche Design P’9521.

Notas de rodapé

  • 1
    Chief executive officer, ou diretor executivo.
  • 2
    Department of Motor Vehicles, equivalente ao nosso Detran.
  • 3
    Massachusetts Institute of Technology, ou Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
  • 4
    🥁

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