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Vidro (Corning)

A Apple e a era do vidro

Autor(a) convidado(a)

Marcos Daniel Vozer Felisberto

Cientista de materiais, especialista em nanotecnologia com foco em grafeno. Apaixonado pela Maçã desde 2006, quando comprou um iBook G3 Bondi Blue. Usa diariamente um iMac Intel 2010, mas gosta mesmo é da sua coleção de Macs PowerPC.

Alguns meses atrás, falei sobre a importância do alumínio nos produtos da Apple e de como ela ajudou a abrir um novo mercado de bens de consumo para esse metal. Dando sequência a essa mistura de Mac, Apple e ciência dos materiais, quero agora falar sobre o vidro e como os investimentos em ciência e inovação, aliados à resiliência de uma empresa, foram fundamentais para gerar um dos produtos de maior sucesso dos últimos 20 anos. Spoiler: não estou me referindo à Apple.

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Nós estamos vivendo a era do vidro. É difícil imaginar nossas vidas hoje sem o vidro. Temos vidros nos carros, nas casas, na garrafas de bebidas… você está lendo este texto em um dispositivo com uma tela de vidro. Este texto está chegando até você graças a uma extensa e complexa rede mundial de fibras ópticas, que nada mais são que fios de vidro.

As Nações Unidas declararam 2022 como o Ano Internacional do Vidro. O vidro está profundamente enraizado na forma de vida da sociedade moderna e não há indícios de que ele deixará de ter esse papel central em nossas vidas tão cedo. É difícil estimar a partir de que momento o vidro se tornou relevante em nossas vidas ou quando começou a era do vidro, pois nós a estamos vivendo. Quando olhamos para o passado, centenas ou milhares de anos, é fácil determinar marcos temporais de início e fim, dizer onde começou e onde terminou a Idade da Pedra, do Ferro, do Bronze, etc. Mas quando vivemos imersos em uma dessas eras, determinar esses limites fica bastante mais difícil. Porém, no caso específico da relação Apple, vidro é diferente — e nós podemos saber com enorme precisão quando e como o vidro surgiu e assumiu um papel de destaque nos produtos da empresa. Nem faz tanto tempo, foi há aproximadamente 15 anos.

Em janeiro de 2007, Steve Jobs apresentou ao mundo o aparelho que transformaria a maneira como nos comunicamos e ditaria as regras da indústria do setor pelos próximos anos: o iPhone. Aquele retângulo com cantos arredondados, sem teclado físico e com apenas um botão na parte frontal seria desejado pelos consumidores e exaustivamente copiado por toda a indústria.

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Mas entre o iPhone mostrado por Jobs na apresentação (em janeiro) e o iPhone enviado aos consumidores (em julho daquele 2007), havia uma diferença fundamental: a tela. Um dia após apresentar o iPhone ao mundo, Jobs reuniu a equipe de desenvolvimento na Apple para comemorar o sucesso do lançamento, mas havia um porém. “Todos adoraram, a imprensa só fala no iPhone, mas há um problema: a tela risca com enorme facilidade”, disse Jobs à equipe. E anunciou: “Em julho, quando essa coisa for à venda, terá uma tela de vidro.”

Jeff Williams, chefe de operações da Apple, tentou argumentar dizendo que a equipe de engenharia já havia testado todas as opções de vidro no mercado, mas a tela sempre quebrava com facilidade. Simplesmente não existia nenhum vidro disponível naquele momento para aquela aplicação. Talvez em três ou quatro anos, a tecnologia evoluísse o suficiente, mas naquele momento não era possível. A resposta de Jobs foi “eu não sei como iremos fazer, mas em julho os iPhones enviados aos consumidores terão tela de vidro”.

A solução veio da Corning, que havia feito algumas pesquisas com um tipo especial de vidro que nunca havia encontrado um cliente. Em julho de 2007, quando os primeiros iPhones começaram a ser enviados aos compradores, o Gorilla Glass estava na tela de todos eles. O próprio Williams conta essa história nesse vídeo de 2017, na sede da Corning.

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Se você é um engenheiro ou estudante de engenharia familiarizado com desenvolvimento de processos e produtos, sabe o que significa uma alteração como essa em apenas seis meses. Não estamos falando de uma pequena alteração de cor ou de forma, algum detalhe estético; estamos falando de uma alteração profunda na principal característica do produto, após ele ter sido anunciado ao público, alguns meses antes de começar a ser fabricado em massa e enviado aos clientes. Uma loucura! E, para complementar a insanidade, a alteração estava sendo feita por uma tecnologia que na prática ainda não existia, que havia sido demonstrada apenas em testes em escala de laboratório!

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A história de como a Corning e o Gorilla Glass entraram no desenvolvimento do iPhone está contada na biografia de Steve Jobs, escrita por Walter Isaacson — e é talvez um dos melhores exemplos do “Campo de Distorção da Realidade” de Jobs em ação. Envolve Jobs ligando para o número central da Corning, se identificando como “Steve Jobs”, pedindo para falar com o presidente da empresa, e tendo ataques histéricos quando a atendente disse que não podia simplesmente transferir a ligação. Quando o presidente da Corning disse a Jobs que não poderia fabricar o Gorilla Glass na escala que a Apple desejava em tão pouco tempo, a resposta de Jobs foi um simples: “Não tenha medo. Você consegue. Pense nisso. Você consegue.” E ele, de fato, conseguiu. Inicialmente no iPhone, hoje o Gorilla Glass (em sua nona geração) está na tela da imensa maioria de telefones, tablets e smartwatches do mercado.

As origens do vidro

Mas antes de discutirmos com mais detalhes o que é o Gorilla Glass e o que faz dele algo tão especial, precisamos entender melhor o que são vidros e como eles são produzidos.

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De maneira geral, os vidros são obtidos a partir da areia fundida e resfriada rapidamente, e podem ser formados em processos naturais. Quando a lava vulcânica resfria, forma a obsidiana (ou “vidro vulcânico”). O impacto de um meteorito com o solo gera tanto calor que funde a areia e a rocha do próprio meteorito, formando um tipo de vidro conhecido como impactito. Outro “vidro natural” — e talvez o mais espetacular — é o fulgurito, gerado pelo impacto de um raio sobre o solo. A areia funde em torno do caminho por onde a corrente elétrica percorre o solo, gerando estruturas de vidro ocas e extremamente ramificadas.

O vidro é um material conhecido e explorado há muito tempo pela humanidade. Lascas de obsidianas foram amplamente utilizadas por humanos no final da Idade da Pedra, há cerca de 6.000 anos, na confecção de pontas de flechas, lanças e ferramentas de corte durante a chama Revolução do Neolítico.

Os primeiros vidros “sintéticos”, feitos pelos egípcios através da técnica de sopro, datam de aproximadamente 3.400 anos atrás. E “sopro”, aqui, entende-se como sopro mesmo! O vidro fundido é um líquido bastante viscoso, que pode ser moldado pela injeção de ar. É a técnica utilizada até hoje para a produção de garrafas de vidro em escala industrial.

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Majoritariamente, o vidro comum é composto por dióxido de silício (Si2O), comumente conhecido como sílica e obtido da areia. Entretanto, ao longo da história, fomos descobrindo que a adição de outros materiais ao processo de produção pode dar ao vidro propriedades e características muito diferentes, de modo que há muito tempo que o vidro como conhecemos não é apenas “areia fundida”. Um dos exemplos mais antigos conhecidos é o “Cálice de Lycurgus”, produzido em Roma no século IV.

Uma pequena quantidade de nanopartículas de ouro e prata está misturada ao vidro da taça, provavelmente adicionadas por acidente ou contaminação durante a sua fabricação, e a cor da taça depende da direção em que ela é iluminada. Quando a fonte de luz está na frente e olhamos através da luz refletida, a taça tem uma tonalidade esverdeada; quando a luz está localizada atrás da taça e a observamos através da luz transmitida pelo vidro, a taça brilha em vermelho. Vidros com metais e óxidos metálicos em sua composição são hoje conhecidos como vidros dicroicos e possuem diversas aplicações, de arte e arquitetura a técnicas de microscopia e até mesmo óculos 3D.

Calma leitor, já vamos voltar ao Gorilla Glass! Mas esse desenvolvimento de vidros de diferentes composições está intimamente ligado a ele, afinal, é a composição química que faz o vidro da tela de nossos gadgets tão especial.

Foi somente por volta do século XI que se desenvolveu a tecnologia para a produção de vidros planos e coloridos e que foram amplamente utilizados nos vitrais das catedrais europeias durante a Idade Média — e não, apesar do que você deve ter escutado ao longo dos anos, os vitrais das catedrais europeias não estão “derretendo” ou escoando com o tempo. O fato de eles serem mais largos na base é devido a imperfeições da técnica de fabricação empregada — esse é um mito largamente difundido no mundo inteiro e foi esclarecido [PDF] por um cientista brasileiro nos anos 1990.

Os vidros “cristais” só foram inventados no século XVI, quando o óxido de potássio (K2O) utilizado na produção do vidro comum foi substituído pelo óxido de chumbo (PbO). Isso deu origem a um vidro com alto índice de refração, que brilha intensa e lindamente quando iluminado, um “cristal”. E a palavra cristal vai entre aspas porque, na verdade, não se trata de um cristal. Nenhum vidro é um cristal! “Vidro cristal” é apenas uma denominação popular para um vidro de alta qualidade e transparência. Do ponto de vista químico e físico (átomos e moléculas), nenhum vidro é um cristal — nem mesmo aquela sua taça de champagne chiquíssima!

Então, afinal de contas…

O que é um vidro?

Um vidro é um tipo especial de sólido, chamado não cristalino, e que é obtido quando um líquido é resfriado rapidamente. Em um sólido comum, os átomos ocupam posições “quase fixas” e bem definidas, mantendo as distâncias relativas uns aos outros, formando uma estrutura ordenada e tridimensional que chamamos de rede cristalina. E essa rede apresenta uma ordenação de longo alcance. Podemos cortar uma barra comprida de aço em milhares de pequeninos pedaços e, ao analisar cada pedacinho, veremos que os átomos mantém o seu padrão de organização, a mesma estrutura cristalina. Isso vale para os metais, ligas metálicas, quartzo, diamante, grafite entre outros materiais. São os chamados sólidos cristalinos.

Mas quando resfriamos rapidamente um líquido (dióxido de silício, no caso do vidro), os átomos não têm tempo de se acomodar e formar uma estrutura organizada. É como se “congelássemos” instantaneamente os átomos na posição em que eles estão, naquele momento, dando origem a uma estrutura sólida porém desordenada no nível atômico. É um sólido não cristalino, ou amorfo.

Uma boa maneira de exemplificar essa ideia é com as espigas de milho da imagem abaixo. Imagine que cada grão de milho é um átomo. Na espiga da esquerda, os átomos estão distribuídos de maneira uniforme, formam uma estrutura organizada, cristalina. Podemos escolher dois grãos de milho quaisquer da espiga e eles estarão rodeados por aproximadamente a mesma quantidade de grãos e distribuídos da mesma maneira. Formam uma rede cristalina de longo alcance. Na espiga da direita também temos um material sólido, mas a distribuição dos grãos não obedece uma ordem. Cada grão está rodeado por uma quantidade diferente de grãos, posicionados de maneira diferente. Não há um padrão claro na distribuição dos grãos. Às vezes, pode se formar algum padrão localmente, em uma pequena região, mas esse padrão não se repete ao longo de toda a espiga. Não há uma ordem de longo alcance. Trata-se de uma estrutura não cristalina ou amorfa.

Cristalino vs. amorfo
Estrutura cristalina vs. estrutura amorfa. Em um sólido cristalino, cada átomo (grão de milho na imagem) ocupa uma posição bem definida em uma rede organizada chamada estrutura cristalina (figura da esquerda); em um sólido amorfo, os átomos não apresentam nenhuma organização e estão distribuídos quase aleatoriamente na estrutura.

Como disse acima, o vidro fundido é um líquido bastante viscoso (algo parecido com o mel) e há milhares de anos é soprado para ser moldado nas mais diversas geometrias, como garrafas, copos, vasos, jarras, etc. Entretanto, produzir um vidro plano, com qualidade que permita a aplicação em telas de eletrônicos, construção civil e automóveis, por exemplo, demandou o desenvolvimento de um processo novo e bastante mais recente na nossa história.

Vidros planos

Qual a maneira mais simples e direta de se obter uma lâmina plana a partir de um material fundido? Simplesmente derrame o líquido sobre uma forma (molde) e deixe a gravidade fazer o seu trabalho. Você faz isso cada vez que prepara uma panqueca, por exemplo!

Durante muito tempo, essa foi uma técnica utilizada para a produção de vidros planos. Um molde de ferro onde o vidro fundido era derramado e fluía sob ação da gravidade. Apesar de ser um método efetivo e relativamente simples, ele não permite um bom controle na espessura da lâmina e na temperatura de resfriamento da placa, além de limitar o tamanho da peça produzida (a partir de determinado tamanho, o vidro esfria e solidifica antes de se espalhar por todo o molde). Até o início do século XX, simplesmente não existia nenhum método capaz de produzir vidros planos em larga escala.

A primeira grande inovação no método de produção de vidros planos surgiu somente por volta de 1900, com o belga Émile Fourcault. No método de Fourcault, o vidro é puxado verticalmente para cima a partir de um forno cheio de vidro líquido em alta temperatura. Enquanto vai sendo puxado, o vidro vai esfriando, formando uma lâmina plana. O processo de Fourcault permite a produção de lâminas grandes de vidro plano e foi largamente utilizado pela indústria até a década de 1960, quando o engenheiro britânico Alastair Pilkington desenvolveu um novo método de produção de vidros planos que gerava vidros de qualidade muito superior ao método de Fourcault.

Método de Fourcault
Método de Fourcault, a primeira técnica que permitiu a produção de vidros planos em larga quantidade. O vidro é puxado verticalmente para cima a partir do forno com vidro líquido.

O vidro produzido pelo método de Pilkington ficou conhecido como “vidro flutuante” (“float glass”) e é hoje o método mais utilizado no mundo para a produção de vidros planos. E a ideia por trás da técnica é genialmente simples. Ao invés do trabalhoso e custoso processo de puxar o vidro contra a gravidade do método de Fourcault, no método de Pilkington o vidro líquido é gentilmente vertido sobre uma “piscina” de estanho líquido. O estanho é mais denso que o vidro, portanto o vidro “flutua” sobre o estanho e flui sob ação do próprio peso, formando uma lâmina plana.

Ao invés de lutar contra a gravidade, o método de Pilkington usa a gravidade a seu favor. Enquanto flutua sobre o estanho, o vidro esfria e é puxado por uma ponta da piscina enquanto mais vidro fundido é adicionado na outra ponta. Um processo de produção contínuo em larga escala. Uma ilustração do processo pode ser vista nesse vídeo, enquanto o processo na “vida real” pode ser visto aqui:

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Gorilla Glass

Achou que eu tinha esquecido do Gorilla Glass? Bom, o vidro produzido pela Corning e que está em praticamente todos os gadgets que amamos é produzido por um processo ainda mais simples e genial.

Lembre de Jobs lançando o iMac G4 e dizendo: “Deixe cada elemento ser o que ele verdadeiramente é.” Se o drive óptico quer ser horizontal, deixe ele ser horizontal; se a tela quer ser plana, deixe ela ser plana”. Pois o enfoque da Corning para produzir o Gorilla Glass é semelhante.

Se é para usar a gravidade para fazer um vidro plano, vamos usar a gravidade do jeito que ela funciona melhor: de cima pra baixo, puxando as coisas em direção à superfície da Terra. Ao invés de puxar o vidro contra a gravidade ou de fazer ele fluir sobre um leito de estanho líquido, a Corning colocou o forno onde a sílica e demais materiais são fundidos até se transformarem em vidro líquido, em uma altura equivalente a um prédio de sete andares. Lá de cima, o vidro fundido “cai” sob ação da gravidade, escoando livremente sem contato com nenhuma superfície. No chão, onde o vidro já chega frio e solidificado, robôs cortam as lâminas e as transportam para a embalagem.

Um processo absolutamente clean, que gera lâminas de vidro de elevada pureza e qualidade. A ideia, que a Corning chama de glass fusion process, pode ser visualizada nessa ilustração da página da empresa no YouTube:

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E um pouco do interior da fábrica da Corning e do processo de produção do Gorilla Glass podem ser vistos nessa matéria da CNBC:

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Na verdade, o vidro que sai desse processo de produção ainda não é o Gorilla Glass. Ao fim dessa queda livre de mais de 20 metros, ele ainda é um vidro “comum”. Tem uma excelente qualidade, a espessura pode ser finamente controlada desde alguns micrômetros até milímetros, mas ainda não apresenta as propriedades de dureza e resistência a riscos do Gorilla Glass.

Ele nasce quando é endurecido através de um processo químico conhecido como troca iônica. O vidro é mergulhado em um banho quente (em torno de 400ºC) contendo um sal de potássio (nitrato de potássio, KNO3). Durante esse banho, átomos de sódio (Na) saem da superfície do vidro e são substituídos por átomos de potássio (K).

E aqui é que está o pulo do gato: um átomo de potássio é aproximadamente 20% maior que um átomo de sódio. Esse átomo maior precisa de mais espaço pra poder ocupar o lugar deixado pelo sódio. Pra gerar esse espaço extra, o potássio comprime a rede, deslocando átomos de sódio e abrindo espaço “na marra” na estrutura do vidro. Essa compressão na estrutura cristalina faz com que o vidro fique mais rígido, aumentando consideravelmente a sua dureza. E é essa compressão que dá ao Gorilla Glass suas propriedades de resistência a impacto e a riscos.

Para explicar isso, é preciso entender que quando um determinado material é flexionado, ocorrem fenômenos contrários em cada uma das duas superfícies. Uma superfície sofre compressão, enquanto a outra sofre tração.

Flexão de vidro
Quando submetido à flexão, as superfícies de um material sofrem esforços contrários um ao outro. Uma superfície é comprimida enquanto a outra é tracionada.

A resistência mecânica à compressão do vidro é muito superior à tração. Com as duas superfícies comprimidas devido à troca iônica de Na por K, o Gorilla Glass resiste a uma flexão muito maior até que comece a sofrer tensão e eventualmente se rompa. A mesma ideia se aplica à resistência a riscos. Esse é o segredo do Gorilla Glass, uma tratamento químico que gera uma superfície enrijecida por uma compressão dos átomos na estrutura.

O endurecimento químico do vidro é similar ao processo de têmpera, também usado em vidros e metais. O objetivo final é o mesmo, endurecer a superfície. Porém, a têmpera se realiza com um “choque térmico” da superfície. O vidro ou metal é aquecido e então submergido em um líquido frio. A superfície esfria mais rápido que o interior da peça e o resultado obtido é o endurecimento da superfície. O endurecimento químico é um processo mais caro, mas que no caso do vidro produz peças sem falhas, empenamento ou distorções ópticas. Além disso, o endurecimento químico pode ser aplicado a vidros de qualquer espessura, enquanto a têmpera é limitada a vidros de pouca espessura.

É por isso que, em geral, o endurecimento químico é usado em vidros aplicados a produtos com maior valor agregado, como dispositivos eletrônicos e no canopi alguns aviões.  

Ciência, tecnologia e inovação

A Corning é uma empresa norte-americana com mais de 170 anos, fundada em 1851, e que foi responsável por alguns dos maiores desenvolvimentos da ciência e tecnologia de vidros e cerâmicos da história. Ela é considerada uma das empresas mais inovadoras de todos os tempos.

Desenvolveu os vidros utilizados por Thomas Edson na fabricação das primeiras lâmpadas elétricas, no fim do século XIX. Em 1915 inventou o Pyrex, um tipo de vidro transparente resistente a alta temperatura usado em laboratórios e cozinhas do mundo inteiro — quem nunca assou algo em uma travessa de Pyrex? Pois é. Ajudou a desenvolver e foi uma das primeiras fabricantes dos vidros usados nos tubos de raios catódicos de televisores. Nos anos 1930, fabricou o espelho de 5 metros de diâmetro do telescópio do Observatório Palomar do Caltech, em San Diego. Forneceu o vidro usado na fabricação do espelho primário do Telescópio Espacial Hubble. Produz as janelas de todos os veículos espaciais dos EUA.

É uma gigante, com mais de 60 mil funcionários e US$14 bilhões em vendas apenas em 2021. Uma gigante que entende os desafios do desenvolvimento tecnológico e sabe que, às vezes, há um longo caminho a ser percorrido para que uma ideia vire um produto. Que o diga o Gorilla Glass.

As bases do que viria a se tornar o Gorilla Glass começaram a ser estudadas pela Corning nos anos 1960. Em 1962, a empresa começou a desenvolver um tipo de vidro especial visando a aplicação em para-brisas de automóveis. Esse vidro, chamado de chemcor (chem de chemical), passava por um processo químico que endurecia a superfície e fazia com que em caso de quebra o vidro estilhaçasse em pequenos fragmentos, sendo então mais seguro aos ocupantes do veículo.

Além disso, com o chemcor, os para-brisas podiam ser mais finos e mais leves que os para-brisas tradicionais da época. O chemcor estreou em 1970, no Javelin (um muscle car que competia com o Ford Mustang e o Chevrolet Camaro). O problema, para a Corning, foi que na época não existia legislação que regulamentasse os parâmetros de segurança necessários para os para-brisas. Não existia uma regra que dissesse como um para-brisa deveria ser construído. Sem incentivo (ou obrigação), nenhum fabricante quis utilizar um vidro mais caro, apesar de mais seguro, e preferiu continuar utilizando os vidros laminados padrões da época.

Para a Corning, foi um golpe duro. A maior e mais cara “falha” cometida pela empresa. Porém, como você já deve ter percebido, essa foi a semente que décadas depois germinou no Gorilla Glass. O processo de endurecimento químico por troca iônica, que nos anos 2000 daria origem ao vidro presente nas telas de praticamente todos os smartphones do mundo, foi desenvolvido pela Corning nos anos 1960 pensando na produção de para-brisas!

No final dos anos 1970, a Corning desenvolveu um novo tipo de fibra óptica que permitiu a expansão das telecomunicações pelo mundo. As ações da empresa subiram de maneira consistente até o final da década de 1990, quando a rápida expansão da internet fez a demanda mundial por fibra óptica explodir e as ações da empresa se valorizarem dezenas de dólares em poucos meses acompanhando a “bolha da internet”. Mas a alegria durou pouco. A bolha estourou em 2001 e as ações da Corning se aproximaram do seu mínimo histórico.

Preço médio das ações da Corning
Adaptado de MacroTrends.

Mas note como a empresa voltou a se recuperar a partir de 2005 e se manteve em crescimento desde então (descontando a crise de 2008). O que aconteceu em 2005 foi que a Corning revisitou o chemcor e iniciou o desenvolvimento do Gorilla Glass. A empresa percebeu que a popularização dos eletrônicos poderia gerar um novo mercado para vidros mais resistentes e finos.

Em 2007, a Apple e o iPhone cruzaram o caminho da Corning e o resto é história. Mas a história do Gorilla Glass mostra a importância do investimento em ciência e tecnologia, e como às vezes pode ser necessário tempo e paciência para que uma nova tecnologia encontre um match perfeito em termos de mercado e aplicação.

A partir do iPhone 12, a Apple passou a usar um novo tipo de vidro, também desenvolvido em parceria com a Corning, comercialmente chamado de Ceramic Shield. Trata-se de um vidro que é submetido a um tratamento térmico em alta temperatura que promove a formação de microcristais na estrutura dele. Obtém-se, então, um vitrocerâmico — um vidro (sólido amorfo) com algumas regiões onde os átomos estão organizados em uma estrutura cristalina (sólido cristalino). Essa mistura de cristalino e amorfo gera um vidro com elevada dureza e resistência mecânica, além de excelente resistência à temperatura. São os mesmos vidros usados em fogões cooktop de indução, por exemplo, com composições químicas diferentes é claro.

Bom, mas isso é assunto para outro texto…


Fontes:

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