Em uma plataforma cheia de pérolas quase desconhecidas do grande público, “The Big Door Prize” (ou “A Máquina do Destino”, na tradução para o português) é um dos melhores exemplos de como o Apple TV+ tem um catálogo subestimado, para dizer o mínimo.
A primeira temporada da série trouxe uma combinação intrigante de comédia com sensibilidade, mostrando que é possível construir uma narrativa calcada na positividade e no tom de inspiração sem cair no sentimentalismo (sim, “Ted Lasso”, estou olhando para a sua terceira temporada) — tudo isso enquanto também vai se costurando um mistério envolvente, no melhor espírito de “Severance” ou outras séries baseadas em grandes conceitos e reviravoltas.
Por essas e outras, a segunda temporada da produção — que estreou na plataforma da Maçã na última quarta-feira (24/4) — vinha sendo aguardada com bastante afinco pelos (aproximadamente sete ou oito) admiradores da série, incluindo este que vos escreve. E a boa notícia é que, com base nos três primeiros episódios liberados pela Apple (os sete restantes serão disponibilizados semanalmente), “The Big Door Prize” preserva seu equilíbrio delicado entre comédia e drama com bastante personalidade. Por outro lado, a notícia não tão boa é que, em alguns momentos, sua narrativa tende a focar demais na parte do mistério quando, na verdade, tudo o que queremos é passar mais tempo com sua galeria carismática de personagens.
Se você não é familiar à premissa de “The Big Door Prize”, aí vai uma breve explicação: a série é concentrada nos habitantes de Deerfield, uma pequena cidade no Meio-Oeste dos EUA, e no caos que se instala entre a comunidade depois que uma máquina misteriosa chamada MORPHO surge nos fundos da mercearia local. O propósito da máquina é simples: ela é capaz de revelar, em apenas uma palavra, o potencial da vida de qualquer pessoa que a usa — o que faz com que todos os cidadãos de Deerfield empreendam mudanças drásticas em suas vidas (e na própria cidade) para conquistar aquilo que, segundo a MORPHO, estão destinados a ser.
Serei vago aqui para evitar spoilers da primeira temporada, mas o fato é que, ao fim da leva inicial de episódios, algumas reviravoltas nos fazem acreditar que a MORPHO pode estar com seus dias contados. É claro, entretanto, que não seria esse o caso: a máquina misteriosa está de volta com um twist na segunda temporada — agora, ela não mostra o potencial dos seus usuários com apenas uma palavra, mas com uma visão completa de um futuro possível. E isso, claro, é a receita para mais um monte de confusões.
Nesse contexto, os protagonistas Dusty (Chris O’Dowd) e Cass (Gabrielle Dennis), enfrentando uma crise no casamento, precisam se confrontar com o que a máquina mostra a cada um deles; Izzy (Crystal R. Fox), mãe de Cass, deve refletir sobre sua relação problemática com a filha e Hana (Ally Maki) precisa explorar mais a sua ligação misteriosa com a MORPHO antes que a cidade inteira mergulhe no mais completo descontrole.
Esses são apenas alguns dos conflitos e questões que permeiam a narrativa da segunda temporada, e é aqui que o roteiro da série — escrito pelo showrunner David West Read (“Schitt’s Creek”) e por uma sala de roteiristas bastante talentosa — brilha com mais força. É nos pequenos conflitos, nas decisões que seus personagens são forçados a tomar, nas perspectivas de vida a que são confrontados e/ou tentados e nas reações que têm a essas visões, que “The Big Door Prize” tem seu coração. Mas, infelizmente, a segunda temporada também dobra a aposta nos mistérios relacionados à MORPHO, e é impossível não sentir que este aspecto acaba arrastando um pouco mais a parte positiva da história.
Uma das primeiras coisas que você aprende numa aula de narrativa é que histórias ficcionais podem ser definidas pelo roteiro (plot-driven, como dirão os anglófonos) ou pelos seus personagens (character-driven). Histórias plot-driven costumam ter grandes acontecimentos e reviravoltas, e tem seus personagens meio que como peças num tabuleiro de xadrez, testemunhando e/ou influenciando esses acontecimentos que são, no fim das contas, o epicentro da narrativa. No audiovisual, narrativas plot-driven estão mais associadas a produções de grande orçamento, filmes de ação e aventura, ficção científica e outros gêneros mais bem definidos.
Por outro lado, narrativas character-driven são aquelas que algumas pessoas — no geral, com pouca alfabetização artística — classificariam como “histórias em que nada acontece”. Isto é, são histórias que costumam se concentrar nos pormenores das vidas dos seus personagens, geralmente sem grandes peripécias ou guinadas, e em como esses (pequenos) acontecimentos influenciam no desenvolvimento do personagem. Filmes e séries de menor escala, mais dramáticos e mais intimistas, costumam fazer parte deste tipo de narrativa.
Por que eu estou explicando isso? Porque “The Big Door Prize” é uma que quer desesperadamente ser character-driven mas, por qualquer razão (pressão do mercado? Busca por audiência? Engajamento?) precisa ser plot-driven. Aqui, entramos de novo numa discussão que já puxei ao falar de “Sugar”: a tal da caixa de mistérios trazida por J. J. Abrams a Hollywood e que meio que transformou o jeito da indústria de contar histórias e atrair a atenção do público — uma técnica que, quando bem empregada, pode criar maravilhas como “Lost”, mas cada vez mais vem sendo distorcida para criar tramas dotadas de curiosidades artificiais, de reviravoltas baratas e de ganchos forçados.
O que também não ajuda “The Big Door Prize” é o fato de que, ao contrário das megaproduções lançadas pelo Apple TV+ nas últimas semanas, o aspecto técnico da série não diz absolutamente nada ao seu favor. Fica claro que estamos assistindo a uma série de orçamento mais baixo — o que não teria problema nenhum (ora, alguns artistas fazem coisas absolutamente fenomenais com pouco ou nenhum dinheiro) não fosse o fato de que, em certos pontos, a produção parece realmente desleixada: a edição peca em cenas que terminam antes do que deveriam, sem deixar qualquer oportunidade de nuance para os atores, e a iluminação parece ter sido feita sem nenhum controle, já que a luz parece vir de qualquer ângulo aleatório dependendo da tomada.
É uma pena, portanto, que a segunda temporada da série se entregue a alguns, digamos, modismos e tendências, esquecendo-se daquilo que ela realmente tem de melhor: seus personagens. Ainda assim, vale a pena continuar acompanhando a história de “The Big Door Prize” justamente por conta deles — vamos ver até quando.
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